Wednesday, December 17, 2014

O que pode mudar entre EUA e CUBA.

Em 1961 os EUA decretaram o embargo comercial contra Cuba, isolando a ilha economicamente.

O regime cubano foi mantido tanto por fatores internos (propaganda, avanços sociais e repressão a opositores) quanto por fatores externos ( embargo comercial que fortaleceu o sentimento nacionalista e os recursos generosos oferecidos pela então URSS). 

Os admiradores do regime cubano ressaltam os indiscutíveis avanços sociais do país em relação ao que se observa no Caribe, entre países com características semelhantes. 

Os críticos destacam as perseguições políticas e o baixo padrão econômico, evidenciado pela carência de recursos básicos, como bens de consumo e alimentos, por exemplo. 

Em 1991 acabou a URSS, a Guerra Fria e a ajuda soviética para Cuba. Se há algo que se pode criticar tanto à direita quanto à esquerda no regime cubano é justamente a incapacidade do país em ter se preparado para sobreviver por conta própria, sem a ajuda russa ou de quem quer que fosse. 

A Guerra Fria acabou na Europa mas não na América Lationa. O embargo comercial imposto pelos EUA e o isolamento de Cuba permaneceram. O ódio anti-cubano foi mantido principalmente na Flórida, onde há uma forte e influente comunidade cubana. Esse ódio tem sido contrabandeado para o Brasil junto com camisas da Lacoste, blusas da GAP e cremes anti-celulite.

O sistema eleitoral dos EUA é doido e alguns estados têm um peso decisivo para a corrida presidencial. A Flórida é um desses estados que podem decidir qual partido governará o país, Republicanos ou Democratas. Os cubanos e seus descendentes da Flórida que podem votar tendem a condicionar seu voto ao discurso de ódio contra o regime cubano. Muito mais por conveniência eleitoral do que por motivação de princípios o embargo comercial tem sido mantido contra Cuba, que se ressente muito por isso. 


Nos últimos meses dois fatos históricos ocorreram nos EUA. O primeiro foi a declaração da ex-secretária de Estado, Hillary Clinton, de que o embargo contra Cuba deveria ser revisto. O segundo foi a aprovação de uma nova lei que permitirá a legalização de milhões de latinos ilegais que vivem nos EUA. 

Os dois fatos podem ter ser importantes para entendermos o que ocorreu hoje, 17/12/2014, o dia em que EUA e Cuba anunciaram sua reaproximação. 

De um lado, o partido democrata dos EUA parece estar inclinado em favor de maiores e melhores relações com Cuba, o que pega bem para imagem do país na comunidade internacional e abre um mercado de 11 milhões de habitantes. Parece pouco, mas em tempos de crise até consumidor pobre de Cuba é um bom negócio. 

De outro lado, Obama parece ter apostado que as eventuais irritações e perda de votos dos anti-cubanos da Flórida possam ser compensados pelos novos eleitores que serão legalizados até as eleições de 2016. De acordo com a BBC, a perda de apoio dos cubanos à política de isolamento da ilha é forte. Estaria hoje abaixo dos 50%, quando chegou a ser de 64% há 10 anos. 


O gesto de hoje é importante, mas não garante a normalização imediata das relações entre os EUA e Cuba. Isso pode ser dito com base nos seguintes entraves: 

- a oposição do partido Republicano que detém expressiva bancada no Congresso dos EUA. 

- a capacidade de lunáticos cubanos ou da CIA de provocarem algum incidente que resulte em alguma tensão entre os dois países. 

- o tipo de transição que Cuba aceita ter e que os EUA gostariam que ela tivesse. Pelo lado cubano há uma tendência de realizar reformas ao estilo chinês, em que se combina abertura da economia com manutenção do regime político. Isso tem sido feito há mais de 10 anos mas não avança por uma razão óbvia: ao contrário da China, Cuba não conta com investimentos de empresas americanas que dêem suporte econômico ao país. 

- pelo lado dos EUA há setores que se dividem. De um lado estão empresas que querem a rápida normalização das relações econômicas com o fim do embargo. Esses setores estão vendo que Cuba já faz negócios com a Venezuela, China, Canadá, países europeus e com o Brasil. Sabem principalmente que se demorarem muito perderão mercado. De outro lado estão aqueles que perderam com a revolução socialista. Empresas e bens imóveis como fazendas e hoteis foram tomados pelo estado socialista e poderão ser privatizados em algum momento. A questão é simples de ser feita, mas não é fácil de ser respondida: a quem de fato ou de direito pertencem esses bens? Aos antigos proprietários, empresas e ou descendentes, ou ao Estado cubano?

De todos os entraves que possam dificultar o processo de reaproximação entre os dois países, a questão da propriedade daquilo que foi nacionalizado - ou confiscado se preferir - é um dos mais importantes. 

É sensato acreditar que os dois lados já tenham conversado muito sobre esses problemas. Em geral, ficamos sabendo um dia algo que foi por muito tempo negociado, muitas vezes secretamente. Seria ingenuidade imaginar que as questões acima não tenham sido tratadas, em especial a das propriedades. 

De nosso lado fica a expectativa do que possa acontecer. 

Particularmente o palpiteiro aguarda o malabarismo retórico que muitos outros palpiteiros tupiniquins terão para explicar o dia de hoje. Entre alguns setores da imprensa brasileira Cuba tem sido pintada como a terra de belzebu há décadas, com especial ganho de agressividade nos últimos 6 anos. Será divertido ver gente se desdizendo em face de uma realidade que é irrefutável: a história avança e as retaliações impostas pelos EUA a Cuba precisam ser revistas e no mínimo amenizadas. 

No meio de tudo isso, a normalização das relações econômicas de Cuba com os EUA tornará o porto de Mariel, financiado pelo BNDES, muito relevante para empresas brasileiras com interesses no mercado internacional de diversos setores. Ou seja, a construção de um porto que foi visto como capricho ideológico de comunistas brasileiros poderá ser estratégica para a afirmação do capitalismo brasileiro. 

Política internacional é um troço interessante. Ás vezes muito divertido...

Por curiosidade: 

O record de tentativas de assassinato de Fidel Castro, a maioria da CIA ( que pode ser muita coisa, inclusive incompetente)...

 http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2011/12/15/fidel-castro-e-pessoa-que-mais-sofreu-tentativas-de-assassinato.htm


A análise da BBC ( quem se informa pela veja é tonto)

http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/12/141217_normalizacao_eua_cuba_jf



Friday, December 05, 2014

Mandela, há um ano.

Há um ano morreu Madiba Mandela. 

Há um ano o mundo reviu imagens e cenas da luta do povo sul-africano contra um regime racista oficial chamado Apartheid. O regime que em seu auge separou até o sangue de brancos e negros nos hospitais sul-africanos. 

Há pouco menos de um ano o mundo assistiu a uma das cenas mais inusitadas da história recente. Vimos uma leva de chefes de estado e de governo no estádio onde se realizou a cerimônia de despedida de Madiba Mandela. A cerimônia que teve a presença do secretário-geral da ONU, Ban Ki Mun.
A mesma cerimônia em que apenas 5 chefes de estado puderam discursar, sendo da Índia, Cuba, China, EUA e Brasil. 

Há um ano a foto da conversa amistosa entre Barack Obama e Raul Castro correu o mundo. 

Há um ano a presidenta Dilma e ex-presidentes brasileiros viajaram juntos, em missão oficial, para a despedida de Madiba Mandela. José Sarney, Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Lula. Há um ano...


O mundo, por alguns dias, dividiu-se entre a tristeza da partida de Madiba Mandela e o orgulho de ter compartilhado a existência com uma das maiores lideranças políticas do século XX. 

O século que teve o Holocausto, a bomba de Hiroshima e a Guerra do Vietnã. O século que aprendeu, ao custo de muito sangue e tristeza, a importância do diálogo e do respeito ao outro. O século que deveria ter ensinado alguma coisa a respeito da necessidade da tolerância frente ao diferente, divergente e incomum. 

O tempo pode ser percebido de diferentes modos. 

Para uns, um ano é quase nada. 

Para outros, pode parecer uma eternidade. 

Há um ano o mundo sorria em meio à tristeza da morte de um homem. 

Hoje vivemos ainda a incômoda e perigosa realidade do preconceito que assassina negros nos EUA, em Ferguson ou em Nova Iorque. A mesma realidade que mata tantos jovens negros no Brasil, em proporção maior do que a de jovens de outras cores. 

Vivemos a realidade da expressão do ódio sobre nordestinos e pobres. O ódio que aflora pela incapacidade de aceitação da diferença de opinião, orientação sexual, ideologia, cor da pele ou gênero. A realidade em que alguns veteranos do curso de medicina da USP estupram. A mesma realidade em que agentes da PM paulista matam fora da lei. 

Há um ano uma parte da humanidade sentiu a falta de um líder como Madiba Mandela. É bem verdade que outra parte da humanidade respirou aliviada diante da baixa de um peso-pesado da luta pela igualdade racial. 

Há um ano o mundo parecia ter parado para honrar a passagem do homem que servirá como referência de luta para muitas gerações. 

Hoje Mandela faz falta. Assim como sua postura, sua luta e sua humanidade. 

Que a lembrança de sua morte nos sirva para manter a consciência de que a luta contra o que é errado e nocivo para humanidade não deve parar, nunca. Ainda que diante de tantos que hoje se evidenciam com tanta maldade. 

Mandela vive e viverá enquanto dele nos lembrarmos.  

Thursday, November 27, 2014

A Fuvest deveria ser uma prova, não uma novela.

Há muitos a Universidade de São Paulo aplica provas para selecionar candidatos para os seus cursos. Há muitos anos que esse fato é visto, vivido, contado e sofrido de diferentes modos. Aqui o que se faz é apenas isso: acrescentar mais uma às diversas interpretações e lendas que o exame seletivo da Universidade de São Paulo inspira.

O mais curioso na abordagem no processo seletivo da Universidade de São Paulo é a sua narrativa. Na era do "jornalismo de novela", a história rende com um enredo simples, personagens marcantes, herois, vítimas, vilões e um final feliz. E todos os anos, no mês de novembro, a mesma novela é veiculada no noticiário e surge como temas de conversas familiares, amigos e outros grupos carentes de maiores distrações. 

Essa novela digna da programação vespertina do SBsTeira tem títulos e nomes que já foram incorporados em nossa linguagem. O exame seletivo para ser facilmente assimilado pelos espectadores da novela foi simplificado pelo singelo "Fuvest", sigla da Fundação Universitária para o Vestibular. A própria universidade também foi reduzida a uma sigla, USP. 

Esqueça a história de que o exame já fora feito de diferentes formas para diferentes cursos, que já incluiu entrevistas orais ou que já fora aplicado em conjunto com outras universidades. Não leve em conta que a Fuvest aplica uma prova com um objetivo tão simples quanto cruel, que é milhares de pessoas, muitas delas com pleno potencial de aproveitamento acadêmico. Desconsidere o necessário questionamento a respeito dos critérios levados em conta para a elaboração das provas que são consideradas muito boas, mas que a sensatez lembra que estão longe de serem perfeitas. Muito longe. 

A novela da Fuvest exige que tudo seja reduzido à sigla. Isso agiliza a conversa, evita maiores reflexões e garante a popularidade. A audiência gosta e repercute. 

O enredo da novela poderia ser resumido "à saga dos bravos guerreiros que enfrentam muitas dificuldades para garantir seu lugar ao sol". Ou " a conquista da honra de ser tornar uspiano". Ou " a garantia de que o futuro será melhor para aqueles que vencerem". Ou ainda que "os melhores prevalecerão". Cá entre nós, não há novela sem exageros e dramas. 

Como todo enredo, é preciso haver a construção de situações e personagens que nos levarão ao ápice e, para que tenha sucesso de público, apresente um final feliz. 

Assim, a história abrange o "professor legalzão" do cursinho, que diverte e "ensina brincando". A menina que estuda 16 horas por dia e que almeja uma vaga no curso de medicina e confessa seu sonho: "quero ser pediatra" ou de que "gostaria de ajudar as pessoas em programas de ajuda humanitária". Volta e meia aparece também o caso do vestibulando, aluno do cursinho que se destaca nos simulados, estuda muito e ainda tem tempo para malhar na academia, distrair-se com jogos eletrônicos, tocar guitarra, andar de skate, fazer jiu-jtso e ter uma namorada. Ou seja, um jovem como você, tão humano como qualquer um de nós, só que um pouquinho mais interessante que nossa mediocridade existencial pode admitir. 

O ápice da novela da Fuvest é precedido de matérias "jornalísticas" que primam pela originalidade. Todos os anos uma equipe do Jornal Hoje ou do Jornal Nacional filma a aula da véspera da prova, entrevista o professor para uma aula comum e verdadeira, pois, afinal de contas, quem entre nós já não assistiu a uma aula com uma equipe da Rede Globo na sala? O espetáculo deste tipo de "reportagem" conta ainda com "as dicas do que pode cair na prova" - como se todo mundo anotasse e conferisse depois. Para finalizar, a "matéria" é finalizada com as recomendações sobre o que você pode ou não pode fazer no vestibular e os horários de fechamento dos portões. Com frequência o âncora anuncia a próxima matéria, que normalmente surpreende por apresentar alguns times que irão jogar na reta final do brasileirão...      

O dia de realização da FUVEST é o ápice da trama que se repete em prosa e vídeo há tantos anos. Na falta de assunto, links com chamadas ao vivo mostram o congestionamento de veículos a caminho. À noite, as cenas de candidatos chorando diante de portões fechados anunciam o último capítulo. 

No mês de fevereiro a lista dos aprovados fecha o enredo da novela. Cenas de alunos emocionados, pais entrevistados em momento de jubilo e muitos rostos pintados. No intervalo comercial anúncios publicitários de universidades particulares ou cursinhos surgem como amparo àqueles que não puderam desfrutar da felicidade festejada e promovida pela TV. 

Estamos a pouco tempo da realização de mais uma primeira fase para Fuvest. Seja lá qual for a sua expectativa, sonho ou angústia, ela será realizada como tem sido há tanto tempo. Alguns irão bem e outros nem tanto. Pouquíssimos conquistarão pontos com folga para o curso desejado. Um número considerável de candidatos atingirá a nota mínima para a segunda fase de provas. A maioria lamentará a ausência do nome entre os convocados para a sequência do exame. Seja lá qual for grupo em que você esteja, o mundo continuará a ser maior do que essa prova. Todos os que se inscrevem na Fuvest desejam o mesmo. O fato de alguns conseguirem atingir seus objetivos e outros não, é explicado por uma série de fatores que antecederam a prova. Seu desempenho, seja lá qual for, é apenas um momento de uma vida escolar com experiências boas e ruins que fizeram sua história. 

E acredite, a história da sua vida é muito mais séria e importante do que uma prova de exame vestibular. Ou maior do que qualquer novela que simule uma realidade que não condiz com o que as emissoras de rádio e TV mostram todos os anos. A novela da Fuvest pode ser repetida, mas sua vida é única. Aproveite-a bem.   
  
  

Saturday, November 22, 2014

Moisés da Rocha, guerreiro do Samba, guerreiro da Paz.

Na era digital poucos meios de comunicação têm aproveitado tanto novas oportunidades quanto aqueles que se dedicam ao rádio. A invenção velha que as novas tecnologias turbinaram. Enquanto a TV perde para o youtube e os computadores para os celulares, o rádio parece não apenas ter se adaptado e resistido, mas sobretudo se fortalecido.

Diferentes das outras mídias, o rádio proporciona uma identidade singular. Tornamo-nos amigos de locutores, âncoras e repórteres. Assumimos paixões e ódios em relação a emissoras e programas. De vez em quando brigamos e mudamos de estação. As emissoras podem mudar, assim como as pessoas, mas a relação de lealdade permanece.

E poucos programas e radialistas podem ostentar a honra de ter tanta gente fiel e leal quanto ao que motiva esse palpite, escrito no dia da consciência negra. Pois quem explora o dial na Grande Paulo sabe que  há décadas há um programa peculiar e muito respeitado por quem entende de rádio e cultura brasileira: "O samba pede passagem", apresentado por Moisés da Rocha.

O programa de Moisés da Rocha pode ser apreciado na Rádio USP, na sintonia dos 93,7 Mhz, aos sábados e domingos, a partir do meio-dia. Ouvir "O samba pede passagem" é ter a oportunidade de conviver com a cultura viva, permanente, emocionante e marginalizada do samba, dos sambistas e de seus admiradores. Na verdade o programa prima pela simplicidade bem conduzida: é de entretenimento, pois proporciona o contato com a música que distrai e alivia a alma. É informativo, pois é o único canal de notícias que noticia ensaios de escolas de samba diversas, festas comunitárias, datas simbólicas e calendários de atividades ligadas ao mundo do samba. Mas o programa também é formativo, pois sempre é possível aprender algo sobre a cultura e a sociedade brasileira, por meio de histórias e entrevistas com gente que vive do samba, pelo samba e para o samba.

Mas o que diferencia não é o conteúdo, mas a proposta. Oferecer o contato com algo da cultura popular brasileira com a preocupação social, ética e humana. O samba, normalmente lembrado pela mídia grande apenas no carnaval ou pelos estereótipos de costume, é tratado com respeito, mais do que por admiração. Em "O samba pede passagem" sabe-se que a música é uma das manifestações legítimas da identidade que permite a luta comum pela liberdade de um povo. E todos os programas isso é lembrado na voz do insuspeito Plínio Marcos numa gravação que é mais do que um jingle ou chamada, mas o compromisso de quem produz, participa, apresenta e ouve. Como diz o apresentador, "tá todo mundo convidado!".

Mas afinal de contas, quem é Moisés da Rocha? O homem que defende o samba com carinho é antes de tudo tolerante diante das diferenças. Criado em Ourinhos e com formação Metodista, há quem estranhe quando o ouve desejar "axé" para as pessoas. Moisés da Rocha é antes de tudo um respeitador das diferenças de cor, cultura, classe social e religião. Canta no "Coral de Resistência de Negros Evangélicos". E também foi um guerreiro de fato, não apenas simbólico. Na década de 1950 o Brasil participou da missão de Paz da ONU no Canal de Suez e Moisés da Rocha foi um dos soldados enviados. O guerreiro do samba foi também um soldado em um cenário de guerra. Nos dois casos em missão de paz, como pode se conferido pelo que tem disseminado nas últimas três décadas. 

Numa entrevista à revista Trip, Moisés da Rocha declarou que seu programa "dá voz à periferia". Quem se dispuser a ouvi-lo poderá comprovar todos os fins de semana, a partir do meio-dia na rádio USP: "tá todo mundo convidado...". 

Em tempos de polarização política, ofensas gratuitas, preconceitos generalizados e falta de bons modos, é gratificante saber que há alguém que tem lutado com firmeza e coerência sem levantar o tom da voz ou ter qualquer manifestação agressiva. Alguém um dia disse que era preciso endurecer sem perder a ternura e Moisés da Rocha é simplesmente assim: duro em sua trajetória mas também terno. Este palpite é dedicado não apenas a ele, mas a todos que de um modo ou de outro se sensibilizam e reconhecem a importância do dia da consciência negra. E àqueles que almejam um país mais justo, solidário e fraterno.            




http://revistatrip.uol.com.br/so-no-site/moises-da-rocha.html

Wednesday, July 09, 2014

O peso da camisa do Flamengo na derrota por 7x1

O Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1. Foi num jogo de semifinal, por uma Copa do mundo disputada em casa no ano de 2014.

No dia seguinte a perplexidade. Análises, justificativas e outros palpites de todos os lados. De todos os tamanhos. De todas as profundidades. E ao fim do último comentário ou desabafo um fato prevalecerá: o Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1, tendo jogado em casa, por uma Copa do Mundo. 

O Brasil perdeu porque jogou mal. A Alemanha venceu porque jogou bem. Ou o Brasil jogou a pior partida de sua história. E a Alemanha simplesmente jogou bem. 

A seleção alemã jogou com uma camisa linda, homenagem ao time do Flamengo. Quem gosta e conhece futebol sabe o simbolismo disso. O Flamengo de Zico e Júnior. O Flamengo que foi campeão do mundo com um futebol alegre, mas acima de tudo bem jogado. O Flamengo de Adílio e Leandro. O Flamengo que jogava bonito num tempo em que o Grêmio tinha Renato Gaúcho e o Inter tinha Falcão. O Flamengo do tempo em que o São Paulo teve Careca, Oscar e Serginho Chulapa. 

Mario Gotze comemoração Alemanha contra Chile (Foto: EFE)

A seleção da Alemanha homenageou o futebol brasileiro ao jogar com a camisa do Flamengo. E venceu por 7x1. 

A seleção da Alemanha homenageou a geração de atletas que queriam ser como Pelé. A geração que vibrou com o Tricampeonato de 1970 no México. 

A seleção da Alemanha venceu o Brasil por 7x1 ao mesmo tempo em que homenageava o futebol que não ganhou copas, mas que deu muitas alegrias. A seleção da Alemanha venceu por 7x1 com a camisa do Flamengo que jogava contra Sócrates, do Corínthians, na primeira metade da década de 1980.  

http://globoesporte.globo.com/platb/files/157/2010/05/zicofez3noflaflu.jpg
O Brasil já teve um futebol assim. Os jogadores saíam dos campeonatos estaduais e ficavam concentrados, sob o comando de gente como um tal de Telê Santana. Os jogadores de um tempo em que corriam mais nos gramados dos treinos do que posavam para fotos para redes sociais. Jogadores que dedicavam-se muito. Que se divertiam até com excessos fora dos alojamentos. Mas eram jogadores que não eram tão vinculados com filmes publicitários. Jogavam por amor apenas? Claro que não. O futebol já não era puro há muitas décadas. Mas havia também um gosto por jogar bola. Talvez maior do que o amor que muitos dos jogadores de hoje têm pela exposição midiática. 

O Brasil perdeu parte do seu encanto no início da década de 1990. Cansados de jogar bonito e perder jogos decisivos os donos da bola passaram a investir mais em outros aspectos. O vigor físico e a "tática" passaram a ser mais valorizadas. O improviso e a arte tornaram-se mal-vistas. Quase um pecado. 

O Brasil venceu as Copas de 1994 e 2002. Jogou mais feio do que nas conquistas do passado, 1958, 1962 e 1970. Mas o sucesso pareceu indicar que o caminho da força estava correto. E passamos a valorizar o jogo feio sob a crença de que se pode vencer. Competir tornou-se menos importante do que vencer. Jogar bonito não era mais bonito. 

Em 2014 o Brasil perdeu para a Alemanha por 7x1, numa semifinal de Copa do Mundo, jogando em casa. 

A Alemanha jogou com a camisa do Flamengo. 

A Alemanha venceu o Brasil por 7x1 ao mesmo tempo em que homenageava a beleza do futebol brasileiro. A beleza de um futebol que nós mesmos quisemos matar. 

Que os meninos de hoje vejam o futebol do passado. E que aprendam que a beleza também faz parte do futebol. A beleza do drible, não do cabelo do Neymar. A beleza do improviso, não das chuteiras da Nike. A beleza das jogadas com parceria. 

Que os meninos de hoje entendam a razão pela qual a Alemanha usou a camisa com as cores do Flamengo.  E venceu.      

Wednesday, March 05, 2014

O que querem na Ucrânia?

Um erro muito comum nas análises sobre questões internacionais é a personificação dos fenômenos. Nesse tipo de abordagem, convivem a ingenuidade e a má-fé. Às vezes juntas, outras vezes separadas. Não raro fundidas em uma só. Em outras palavras, países não são comparáveis a pessoas. 

Mas como fugir da armadilha das personificações? Antes de tudo, conceitos, história e informações confiáveis.  

Conceitualmente é preciso reconhecer que chefes de Estado falam em nome de seus povos, mas que não são a personificação deles. Representam, mas nem de longe encarnam o que seus povos são. Qualquer nação tem suas contradições. Em que pese uma relativa popularidade para certas questões, sempre haverá grupos descontentes e de oposição. Isto serve para o Brasil de hoje, para Rússia do Carnaval 2014 e para a Alemanha dos tempos de Hitler. Obama representa o povo estadunidense. Cretino é aquele que crê na possibilidade de que todos os seus cidadãos com ele concordem. 

Conhecer um de história também ajuda um bocado. Questões internacionais não nascem do acaso. Não brotam como cogumelo ou surgem como bolor do pão que se esqueceu no armário. Toda crise entre dois ou mais países revela o desequilíbrio de uma dança que já se ensaiava há tempos. 

Nenhum líder colocaria seu prestígio interno e externo em xeque por um capricho matinal. Se ele prevê que terá problemas sérios por uma iniciativa política qualquer, a primeira coisa que leva em conta é se vale ou não a pena. Toda hostilidade ou até mesmo violência respondida deve ser ponderada com o ganho que se pretende ter. Em outras palavras, os líderes se perguntam: "vale ou não à pena?". 

Esmiuçando uma encrenca internacional em andamento verifica-se que os interesses que nela se reconhecem hoje já existiam antes. Em muitos casos, a crise do presente deriva de soluções que não atenderam plenamente os lados em disputa do passado. Ou que líderes do presente entendam que seu país tenha perdido injustamente algo que no presente possa ser recuperado. Um líder maroto é capaz de ressuscitar uma velha questão, aparentemente resolvida, para que possa mudar o curso da história. Ou seja, tenta recriar o processo político, histórico, econômico e social a partir de uma iniciativa do momento, enraizada pelo tempo mas ainda não totalmente enterrada. 

A informação confiável é outro elemento importante, mas que se mostra escasso em nossos tempos. A chamada era da informação nos oferece quantidade e rapidez. Características muitas vezes dispensáveis quando se quer consistência e fidelidade aos fatos. Em nossos tempos a informação consistente e confiável tem sido atropelada por questões práticas e técnicas. Na prática, os grande veículos de informação têm demitido jornalistas mais velhos e experientes, preferindo contratarem os mais jovens e afoitos. A necessidade de redução de gastos justifica essa medida no mundo todo. E aquilo que se ganha no orçamento com os mais jovens é perdido na credibilidade com a publicação de notícias superficiais e com a profundidade analítica de um pires. Fotos e imagens têm sido mais relevantes do que parágrafos de revelem um pensamento mais cauteloso e ponderado. Essa é uma das razões que nos fazem ver as mesma imagens, com descrições semelhantes e um discurso único para o mesmo problema. Perdemos em profundidade aquilo que nos vomitam em quantidade a cada minuto pelos "grandes veículos" da imprensa, nacional e estrangeira. 

Tecnicamente a informação necessária tem sido prejudicada por uma abordagem jornalística que alguns estudiosos têm chamado de "a novelização da notícia". A exemplo do que ocorre nas novelas, não há nuances. Não há espaço para contradições. Num noticiário novelizado há apenas o bem e o mal. O vilão e o herói. O certo e o errado. As notícias são pautadas por essa lógica simplista, para que o leitor, telespectador ou ouvinte tenha "facilidade" de entendimento. Outro aspecto da informação novelizada é a divulgação de certos eventos por etapas, como se fossem capítulos. Nesse tipo de jornalismo, os vilões são carregados em seus aspectos malignos e não se tem nada que possa identificá-los com seres humanos, dotados de bondades e maldades. No oposto, os heróis são quase puros, com virtudes acima de todos e infalíveis. A malandragem ocorre quando personalidades da política ou da polícia são mostradas como heróis coadjuvantes. Nos casos mais bem-sucedidos da novelização jornalística os heróis são gente da própria imprensa. Isto é, aquele veículo ou jornalista que conseguiu, com seu talento e trabalho, a informação que ninguém até aquele momento havia conseguido. O herói midiático é assim aclamado, implicitamente, como aquele que realmente fez a diferença.

No caso da Ucrânia, o que temos então?


A novelização da crise russo-ucraniana começa ao se aceitar que Putin é o vilão. Ou o herói, a depender da fonte escolhida. Putin não é um vilão, assim como está longe de ser um herói. Ele é o cara que serviu ao regime soviético, que usou de meios legais e ilegais para se destacar em sua carreira de agente da KGB. Foi o homem que soube entender o momento político e econômico da Rússia para recuperar a auto-estima de seu povo e realizar mudanças que trouxeram melhorias sentidas por muitos. Putin poderia ser glorificado por isso. Mas seus adversários dentro e, principalmente fora da Rússia, salientam seu personalismo, seu nacionalismo exacerbado e a facilidade com que elimina adversários dentro e fora do país. Tudo isso é verdadeiro, mas incompleto diante do que ele representa para muitos russos. E também não explica o óbvio: se ele é tão mau quanto dizem, por que tem permanecido no poder por tanto tempo? Seja por quais razões forem, inclusive as criminosas e imorais, não se negue a Putin a habilidade que o mantém no Poder desde 2000. Nenhum dirigente russo, desde os tempos dos Czares, conseguiu o que ele tem hoje: a permanência no poder por tanto tempo numa democracia, ainda que repleta de problemas. 

Putin sabe que o nacionalismo e o orgulho dos russos é algo com que não se pode brincar. E que rende popularidade. Quando o governo Bush tentou atrair a Geórgia para a Otan, com promessas econômicas e estratégicas, Putin jogou xadrez. Numa primeira jogada reconheceu a cidadania de georgianos da Ossétia do Sul que se consideram russos. Na segunda jogada, distribuiu armas secretamente para forças pára-militares russas na Ossétia, ou seja, armou pessoas no território georgiano. Em seguida, deixou que o dirigente da Geórgia acreditasse que Bush fosse confiável. O presidente da Geórgia foi tolo o bastante para atacar os russos em seu território. E Putin habilidoso o suficiente para invadir o território vizinho com 300 tanques e ataques aéreos. Bush não arriscou ter problemas com a Rússia por conta da Geórgia. Reclamou e ameaçou com palavras. Nada fez. O presidente georgiano não teve apoio dos EUA e a Ossétia do Sul declarou-se independente. No papel, a Ossétia do Sul não é território russo. Na prática sim. 

Seis anos depois da crise com a Geórgia, Putin volta a jogar, desta vez na Ucrânia. O país tem cerca de 25% da população com etnia russa, principalmente no leste, próximo das fronteiras com a Rússia. Os ucranianos do oeste consideram-se mais europeus e menos russos. Durante a existência da URSS muita coisa aconteceu por lá. A Rússia invadiu a Ucrânia e apoiou os comunistas do país, instalando seu regime socialista e reprimindo os ucranianos de oposição. Na década de 1930, milhares de ucranianos morreram de fome, diante de um programa de agricultura imposto por Moscou. Quando a Alemanha nazista invadiu o país, muitos foram os ucranianos que se aliaram aos alemães. Assim como foram muitos aqueles que deram suas vidas para a vitória do Exército Vermelho. Após a guerra, Stalin perseguiu muitos ucranianos considerados traidores, assim como condecorou seus heróis. 

Na década de 1950, o sucessor de Stalin, Nikita Krushev, cedeu a Crimeia, território com maioria russa para a Ucrânia. Há quem diga que Krushev tenha dado um gesto de reparação ao que os russos fizeram no país. Dizem que ele conheceu como poucos os abusos do stalinismo na Ucrânia. A cessão territorial seria então uma compensação histórica para isso. Krushev pode ter agradado muitos ucranianos, mas irritou muitos russos, tanto da Crimeia quanto da própria Rússia. Isso nunca foi aceito por um bocado de gente na Rússia. Essa insatisfação atravessou gerações e são a eles que Putin quer atender hoje. 

A Crimeia foi mantida como território da Ucrânia, mesmo quando a URSS se desintegrou e o Exército Vermelho se retirou do país. Por acordo, a Crimeia manteria o russo como língua oficial e parte de seu litoral no Mar Negro se tornaria área militar da Marinha Russa. Muitos ucranianos ocidentais não aceitaram esse acordo. Muitos deles descendem daqueles que se aliaram aos nazistas na Segunda Grande Guerrra Mundial. Muitos deles apoiaram ou lideraram a derrubada do presidente formal da Ucrânia há poucos dias. 



Em vermelho, os ucranianos de fala russa. 

ukraine 2010 election
Resultado das eleições de 2010. Em azul, os russos votaram no presidente deposto... A disputa na Ucrânia é mais do que política, é étnica.

Pelo lado dos EUA e da União Europeia, a instabilidade ucraniana foi bem-vinda. Por gestos e palavras apoiaram os opositores do governo anterior, leal à Rússia. Com dinheiro daquelas contas secretas que Edward Snowden conhece bem, financiaram grupos mais exaltados. Inclusive neo-nazistas. Putin fez o mesmo, financiando e armando grupos de "auto-defesa" russa na Ucrânia. Ou seja, EUA e UE financiaram e armaram opositores ucranianos do oeste e a Rússia os que apoiavam o governo a leste. Qualquer semelhança com o que ocorre na guerra civil em andamento na Síria não é coincidência...

Putin conseguiu autorização de seu leal parlamento para invadir a Ucrânia, em nome da defesa dos direitos humanos de russos que vivem naquele país. No papel, tem autorização legal de seu país para marchar até Kiev, capital ucraniana. Na prática, Putin usa essa autorização como um sinal, algo que pode vir a ser feito, não o que exatamente irá fazer. Uma ameaça enfim.

Pelo lado os EUA Obama discursa com firmeza. Suspendeu negociações econômicas e ameaçou com sanções. O problema é que isolar economicamente a Rússia não é bom negócio, para os EUA, para a UE e para o mundo... A Rússia é o principal fornecedor de gás natural para os europeus, por meio de gasodutos que atravessam a Ucrânia. Em caso de hostilidades maiores não precisa disparar um único míssil. Basta cortar o gás para a Europa. Putin faria isso? Fez em janeiro de 2007, por cerca de 10 dias, em pleno inverno europeu..

Obviamente que Putin sabe que a suspensão do gás natural para a Europa provocaria uma crise mundial da qual seu país também seria vítima. É verdade que a Europa precisa do gás russo. Assim como é verdade que a Rússia precisa do dinheiro pago por esse gás fornecido aos europeus. 

A escalada das hostilidades verbais chegou a níveis perigosos durante os dias de Carnaval. Tropas russas avançaram e recuaram sobre o território da Ucrânia. Soldados da "auto-defesa" russa no país foram vistos portando fuzis AK-47 e devidamente saudados pelos russos na Ucrânia. Grupos neo-nazistas agrediram russos, comunistas e templos judaicos. Os ânimos estão exaltados e há muito discurso de ódio de ambos os lados. Há muita pólvora e muita gente brincando com fogo. 

Pelo lado dos EUA, da União Europeia e da Rússia não há o menor interesse numa guerra. O mundo já tem problemas demais para mais um, com grandes proporções. Mas, à maneira de tempos imemoriais, não se pode fingir que uma provocação não foi feita. Ou seja, ver um potencial adversário com atos desafiadores e nada fazer em nome da "segurança mundial". Isso é nobre entre seres humanos. Mas não estamos falando de pessoas, mas de países, certo? 

No jogo de provocações, ameaças, avanços e recuos, deverá prevalecer o interesse maior: evitar uma guerra. alguém pode errar o tom e as coisas desandarem de vez. Essa possibilidade é sempre colocada. Mas a probabilidade maior é a de que se busque e se consiga uma solução intermediária. Um acerto que seja melhor do que o que se tem hoje e que não demande um conflito violento, etapa tão elevada quanto indesejada. 

Da parte do palpiteiro fica a expectativa e coleta de informações mais precisas e confiáveis. 

De conselho, fica o mais simples: fuja de toda cobertura jornalística ou análise que carregue no risco de guerra e na construção de mocinhos e bandidos. Nesse jogo, simplesmente não há mocinhos.                                    

Saturday, December 07, 2013

A liderança de Mandela continua a unir

A morte de alguém oferece sempre a oportunidade para repensarmos muitas coisas. A morte de alguém como Nelson Mandela não deve ser diferente.

Madiba Mandela estava muito debilitado, tinha 95 anos e sua morte era esperada há meses. Muita gente apostou que ele morreria no hospital, quando estava internado por ter pneumonia.Até uma disputa familiar pelo direito de determinar o túmulo da família chegou a ser anunciada.

A imprensa nos últimos dias agiu como de costume. Biografia resumida em poucos minutos no rádio e na TV, ou publicada em páginas impressas deram a tonalidade emocional que mantém preciosos pontos de audiência ou alguma venda a mais para jornais e revistas em estado de coma. Nesses casos, é comum que a editoria prepare o material que será publicado tão logo se confirme a morte esperada. Anunciada ao mundo na tarde do dia 5/12, o Jornal Nacional dedicou um tempo considerável para o fato. Frases pinçadas, efeitos visuais e um bom material de arquivo certamente não foram improvisados naquele dia. 

Neste caso, a morte de Mandela para muita gente não se diferencia daquelas que recebem tratamento jornalístico mais prolongado. Jogadores de futebol, atores de cinema, políticos e tantos outros são igualados. Despertam alguma atenção e logo caem no esquecimento. 

Mas a partida de Mandela suscita outras condutas. A primeira é a de reconhecer que não foi apenas um ex-presidente de destaque internacional que morreu. Mas um líder. Certamente um dos líderes que fizeram diferença no século XX. 

Presidentes muitos podem ser. Muitos foram e são. Mas um grande líder  não aparece todos os dias. Líderes de verdade conseguem reconfigurar seus povos e contribuem para mudanças de caminho. Verdade que alguns podem liderar para a catástrofe, como Hitler. Mas outros usam sua liderança para a construção de uma vida melhor. Os líderes que realmente fazem diferença são reconhecidos pela continuidade de suas iniciativas, para além de seu próprio tempo. A liderança talvez possa ser medida justamente por isso, pelo tempo de permanência das ações. E também pelo alcance espacial delas. Certas realizações podem ultrapassar fronteiras. E por isso Mandela se destaca. Pelo alcance de sua obra no tempo e no espaço. 

A África do Sul teve um regime político racista dos mais vergonhosos do século XX. Mandela foi um líder da oposição contra ele. Agiu politicamente desde o início. Optou pela luta armada e não negou isso, jamais. Foi preso por pouco mais de um quarto de século. Sua filha mais nova tinha 2 anos quando ele foi encarcerado. Ele só a reencontrou a poucos anos de sair da prisão, quando ela já era mãe, com mais de 24 anos de idade. 

É impossível entender Mandela sem considerar o tempo em que foi preso. Quebrava pedras de calcário e dormia em péssimas condições. Teve muito tempo para pensar, sofrer e sonhar. Quando foi solto, não apenas a África do Sul o considerava um líder. Mas todo o mundo. Campanhas internacionais foram feitas para libertá-lo. 

Quando Mandela foi solto, ele tinha mais de 90% do país em suas mãos. Não tinha o poder de direito. Mas tinha de fato. Qualquer ser humano teria partido para a vingança contra os brancos. Mas Mandela não foi um ser humano qualquer. Conciliou com a minoria branca, que numericamente era reduzida. Mas militar e economicamente muito forte. Muitos acusam Mandela de ter feito muitas concessões e que por conta disso, as desigualdades entre brancos e negros ainda permanecem. Talvez seus críticos tenham certa razão. Mas um fato é indiscutível. Muitos eram aqueles que apostavam numa guerra civil com um esperado massacre do minoria branca. Um genocídio anunciado e não raro nas décadas de 1980 e 1990. Todas as apostas  num desfecho violento do Apartheid foram erradas. É bem razoável acreditar que as previsões mais pessimistas guardavam o equívoco de subestimar a capacidade política de Mandela.  


Por muitas décadas, uma parte significativa da minoria branca que detinha o poder acusou Mandela de comunista, corrupto, imoral e demagogo. Quando perguntado sobre isso, mesmo que indiretamente, Mandela sacava a frase feita: "Não sou santo...". 

Curioso notar que as grandes realizações se sobrepuseram aos erros do líder sulafricano. Uma dessas realizações foi o resgate da história do Apartheid na Comissão da Verdade e Reconciliação. Mandela entendia que não era o caso de partir para uma revanche, mas também que isso não significava a ocultação dos fatos ocorridos. Era preciso que seu país e que outros povos soubessem a verdade, para que os erros não fossem repetidos. 

Com o tempo, os detratores internos de Mandela se calaram. Muitos brancos não o suportavam mas, diante da força de sua liderança, simplesmente deixaram de se manifestar. 

Falar em lideranças que pregam a paz e defendem soluções negociadas parece algo impossível no Brasil de hoje. Certos segmentos da sociedade brasileira acostumaram-se mal. Passaram a confundir divergência política com inimizade. Críticas com ofensas.E tristemente não têm sido raro vermos
comemorações do câncer alheio ou do sofrimento daquele de quem se discorda. 


A presidência da República emitiu nota que a presidente Dilma irá ao funeral de Nelson Mandela. Na viagem a África do Sul, Dilma terá como convidados 4 ex-presidentes da república. Lula, FHC, Collor e Sarney aceitaram o convite. Não faltarão críticas ao desperdício de dinheiro público ou ao interesse de auto-promoção. Mas não deixa de ser interessante imaginar um bate-papo entre Lula, FHC, Dilma, Collor e Sarney no mesmo avião, por horas. Lideranças políticas de diferentes pesos, com pensamentos distintos e biografias muito peculiares. 

Em tempos de manifestações políticas marcadas pelo ódio e outros rancores, saber que Dilma, Lula e FHC terão a oportunidade de conversarem por horas, sem a presença da imprensa, é muito relevante. Entre os tantos motivos de conversa, certamente estará a vida de Mandela. Se Lula, Dilma e FHC tiverem juízo, farão um balanço honesto de tudo o que fizeram de bom e de ruim para as relações políticas do Brasil. Se tiveram a grandeza que se espera de ex-presidentes, chegarão à conclusão de que o Brasil carece de modos menos virulentos de tratamento entre adversários. 

A possibilidade de que as relações entre líderes petistas e do líder tucano possam ser menos agressivas não significaria a conciliação oportunista. Estaria muito mais próxima de um troço que chamam de civilidade. 

Mandela lutou pela união de seu país e o mundo reconhece isso. Não custa sonhar que possa fazer isso para além de suas fronteiras nacionais. Que o exemplo de Madiba Mandela sirva de assunto no avião da presidência da república.